Do acolhimento à adoção: Mais de 600 crianças e adolescentes vivem em lares na Bahia
Atualmente, na Bahia, 639 crianças e jovens se encontram em unidades de acolhimento ou similares. A informação foi divulgada pelo Censo do Instituto de Geografia e Estatística (IBGE) de 2022. Essas organizações, popularmente conhecidas como “orfanatos” - termo descontinuado mediante a política nacional de assistência social -, e oficialmente nomeadas como unidades de acolhimento, são responsáveis pelo cuidado com crianças e jovens que foram desapropriados de suas famílias após terem os direitos feridos.
Afastados do convívio familiar e muitas vezes vítimas de violações de direitos, essas crianças ficam sob responsabilidade governamental e necessitam de cuidados especiais e especializados. Nessas unidades de acolhimento, parte dessas crianças e jovens voltam a ser inseridos na comunidade e são colocados à disposição do Sistema Nacional de Adoção. Entre as dinâmicas de funcionamento das unidades de acolhimento e o processo do sistema de adoção, existem os mais diversos trâmites. O Bahia Notícias buscou profissionais de referência para falar sobre o tema.
VULNERABILIDADE E ACOLHIMENTO:
No que tange ao funcionamento destas unidades, o BN conversou com a supervisora da Central Estadual de Acolhimento de Crianças e Adolescentes, Sandla Barros. Sandla conta que a situação destas crianças é extrema e segue o princípio do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) de que a criança é de responsabilidade da família, da sociedade e, por fim, do Estado. Assim, ela explica que nem toda situação de vulnerabilidade justifica uma destituição familiar:
“Elas não são acolhidos por vulnerabilidade social. Qualquer criança e adolescente vai para uma unidade de acolhimento se ela sofreu violação de direito ou violência”, afirma. Ela exemplifica o caso de famílias em situação de pobreza ou extrema pobreza: “Vulnerabilidade social, não é motivo para acolhimento. Nenhuma criança deve ser acolhida porque a família é pobre e não tem condição de mantê-la, isso não é motivo. Para isto, a política de assistência social têm os benefícios sócio-assistenciais e essas famílias devem ser atendidas nos CRAS [Centro de Referência de Assistência Social]”, explica.
Foto: Marcelo Casal Jr. / Agência Brasil
No que diz respeito às crianças e jovens que perderam um ou ambos os genitores, a guarda da criança é repassada para familiares e/ou entes próximos, como avós, padrinhos, tios ou até mesmo vizinhos que possuam vínculo com a criança. “Se não encontrar [nenhuma família ou família extensa] aí se comunica para o Conselho Tutelar para uso do Judiciário, pede-se uma ordem judicial, para que ela [a criança ou adolescente] vá para uma unidade de acolhimento”, detalha.
Compreendendo estes casos, é que entende-se o protocolo para o acolhimento destas crianças. A especialista explica que essas crianças são acolhidas em dois tipos de instituições:
“Hoje as unidades são chamadas unidades de acolhimento para crianças e adolescentes. Existem duas modalidades, uma é com 20 acolhidos, que a gente chama abrigos institucionais. O abrigo institucional é para crianças e adolescentes, tudo junto para manter inclusive os irmãos juntos, não quebrar os vínculos familiares. E tem as Casa Lares que são para 10 acolhidos e também são crianças e adolescentes juntos” , define. Ela conta que existe ainda um terceiro serviço de assistência social em que as crianças não são acolhidas em unidades técnicas, mas são abrigadas na casa de famílias selecionadas.
Sandla aponta que em todos os casos as instituições contam com o apoio de profissionais multidisciplinares e precisam respeitar legislações específicas de Assistência Social.
“Todos esses serviços são parte da política de assistência social, então quem é responsável por monitorar e assessorar essas unidades é a Secretaria de Assistência Social do município. A gente sabe que existem unidades clandestinas. Uma unidade que não está inscrita no Conselho de Assistência Social, não está inscrita no conselho de Direito da Criança e do Adolescente. Porque, para ela funcionar, ela precisa estar inscrita nos dois conselhos, pelo menos. Mesmo que seja uma ONG, ou uma instituição privada, ela precisa ser monitorada pela Assistência Social. E se for pública, mais ainda”, ressalta.
Como porta-voz da Central Estadual de Acolhimento de Crianças e Adolescentes, setor vinculado à Secretaria de Assistência e Desenvolvimento Social, Sandla conta que os municípios também recebem suporte para que possam gerir suas unidades de acolhimento, considerando que estas não podem ser terceirizadas. O que ocorre, por sua vez, é que os municípios podem realizar parcerias com instituições de fundo privado, mas garantindo a fiscalização.
“A Secretaria Municipal que é quem contrata, aluga o espaço para a unidade funcionar e a gente, da Central Estadual de Acolhimento, faz todo o assessoramento, orientações. Desde a gestão da unidade a estudo de caso, vamos orientando a equipe de como trabalhar com essas crianças e adolescentes”, explica.
Com relação a sua dinâmica de trabalho, Sandla conta que trabalha visitando unidades de acolhimento anualmente em todo o estado e auxiliando nas resoluções de gestão e trabalho de cuidado infantil. As dez unidades baianas que são monitoradas pela Central estão espalhadas por alguns territórios de identidades, que são escolhidos baseados nas necessidades, ou seja, o número de crianças em situação de acolhimento.
“Essas unidades são regionais, porque ela é implantada em um município que tem a condição de implantação. Entre os critérios, o município tem que ter CREAS, tem que ser sede de comarca [judicial], ele tem que ter uma rede estruturada de saúde, rede de educação, rede de assistência social, o mais estruturado possível”, delimitou. A supervisora diz ainda que esse município é escolhido para absorver as demandas de cerca de sete cidades próximas.
No local, explica Sandla, as crianças recebem atendimentos e suporte especializado com base nos seus antecedentes de violação de direitos e violência, além de serem reinseridas nas suas respectivas comunidades, por meio de atividades sócio-culturais. “Por exemplo, nós temos um número grande de crianças e adolescentes com transtorno mental ou deficiência mental que muitas vezes elas são, inclusive, violentadas pela condição dela. Elas são acompanhadas pelos CAPS [Centros de Atenção Psicossocial] desses municípios. São inseridas na escola, ficam inclusive onde tem escola de tempo integral, na creche”, detalha.
“Elas também são inseridas no serviço de convivência, elas são inseridas, muitas, em alguns projetos, por exemplo, em um município a Uneb [Universidade Estadual da Bahia] também tem um projeto de natação, música, karatê, judô, e eles são encaminhados para esses esses projetos para estarem inseridos na comunidade. Uma das premissas da Assistência Social é a gente conseguir que o nosso público tenha um fortalecimento de vínculo com as famílias e as comunidades que ela vive, então elas não ficam isoladas na unidade”, completa.
CUIDADO E ADOÇÃO
Foto: Rovena Rosa / Agência Brasil
Ao falar sobre o processo de adoção, o Bahia Notícias falou com Gisele Aguiar Argôlo, defensora pública e coordenadora da Especializada da Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente. A jurista conta que o processo de adoção é extremamente complexo e é o processo “final” de uma série de procedimentos que visam a garantia do bem-estar das crianças e jovens acolhidos.
Gisele relembra que o acolhimento em si, só é possível com a destituição do poder familiar, que é considerada uma medida judicial extrema. “O ideal é que toda família criasse o seu filho e sua filha. Então, na verdade, eu acho que o que o mundo deve almejar é que não existam crianças em unidades de acolhimento, só que infelizmente existem”, afirma.
A defensora relata que nas mais diversas situações, as referências desta criança devem ser mantidas, como uma forma de diminuir o impacto da retirada do seio familiar. Ela exemplifica o cenário de crianças indígenas ou quilombolas: “Isso é uma defesa da família, mas é uma defesa dessa criança também, para que ela não perca as referências familiares. Por muito tempo se esqueceu daquela criança dos povos indígenas, ciganos, quilombolas e da religião de matrizes africanas, porque a peculiaridade daquela criança e daquela família, ela precisa ser vista no processo”, ressalta.
“Fora da família dela, uma criança indígena, você não pode pegar criança indígena e levar [para qualquer unidade de acolhimento]. Ela tem que ir para para tribos que acolham outras tribos”, completa. Gisele detalha ainda que “o processo de adoção é um processo” e que entre os trâmites que podem dificultá-lo, estão os critérios dos interessados.
“A demora, muitas vezes, no Cadastro Nacional de Adoção é por causa do perfil. Se você for à unidade de acolhimento, vai ter criança, vai ter adolescente, também com deficiência. Quando a pessoa quer adotar, a pessoa fala ‘não quero com deficiência’, ‘Eu quero branca e parda’, ‘eu quero ou não quero criança negra’, é tipo um cardápio. Então as pessoas, às vezes, estreitam muito esse perfil e aí vem a demora, porque realmente é difícil até 3 anos, é difícil uma criança branca e parda, quanto mais na Bahia”, explica.
A defensora conta ainda que o processo visa a proteção da criança e do adolescente em todas as etapas, inclusive após adoção. “A adoção é irrevogável, ela, como o próprio nome diz, é como se filho fosse e, infelizmente, já tive casos na Defensoria de tentativas de devolução anos depois da adoção, por opção sexual do adolescente”, exemplifica. “Tem até uma moção específica que se houver prejuízo para essa criança e adolescente, prejuízo profundo, cabe até indenizatória em desfavor do pretenso adotante e se aquele adotante recusar uma criança três vezes, três crianças diferentes, ele é excluído do Cadastro Nacional de Adoção”, define.
Gisele faz uma avaliação ainda do cenário de proteção infantil no Brasil: “Eu acho que a gente avançou. Nós avançamos com relação à educação. Nós também avançamos no cenário sócio-educativo, que não vamos esquecer os adolescentes no sistema socioeducativo que merecem também toda proteção. Nós avançamos, mas eu acredito que nós precisamos avançar mais a conscientização, no trabalho infantil, a avançar mais de uma educação infantil para todos”, afirma.
O cenário de acolhimento das crianças e adolescentes na Bahia expõe a fragilidade das relações sociais e a importância de proteger os direitos deste grupo social. Gisele ressalta que a conscientização é parte do processo de evolução deste sistema de acolhimento e proteção às crianças e jovens vulneráveis. “Acho que nós precisamos avançar mais e escutar a criança e o adolescente, dar voz à criança e adolescente de verdade. Isso é uma pauta que o sistema de justiça, mas eu acho que todos precisam fazer isso”, conclui.
Fonte: BAHIA NOTÍCIAS